Texto do colaborador Wagner Lucena
Toda vez que a luz do quarto no prédio em frente a minha janela acende, eu percorro a linha projetada pela moldura da minha janela até onde a luz brota e vejo aquela mulher andarilhar num cômodo em direção a uma borda da varanda. O movimento da cabeça prediz que notas agudas de violino ascendem aos seus ouvidos e uma pose de Vênus de Milos faz ela pender em frente ao espaço que nos separa. O que pensará neste momento? Seu olhar se abre em um esquadro que pergunta a mesma coisa. E a rua desce líquida para dizer que é em nada, é somente em nada que pensa aquela figura branqueada pelas minhas impressões vagas. Não há janelas, espaços-entre, silhuetas, olhares vazios nem passos perdidos. E ainda assim, ela está lá. Quanto mais afinco os sentidos, mais ela não está lá. E ainda assim, está lá a andarilhar. Ontem foi um dia ímpar, como antes de ontem e antes de antes. E serão todos os depois, pois são todos plurais os depois, unidos em um só plural. O uníssono depósito de perspectivas naifes. Cabidos nas palmas das mãos emborcadas, escondidos, perspectivas escondidas nos passos entrelaçados e nas janelas que refletem uma luz andarilha. Mas a rua ainda desce líquida com todos os seus enfeites, que são os nossos. Nós somos os enfeites das ruas que enfeitamos. Nossas palavras repetidas por vazão. Nossas corredeiras de vazios. Nossas ruas líquidas e secas, eretas e opacas. Eu ainda estou lá, no reflexo da janela da mulher que já se foi, foi deitar e dormir; foi dormir e se esquecer que o tamanho da sua varanda caberia muito mais do que os passos dela diziam. A varanda que coube sem saber, todo o vento que já lambeu suas expectativas de ver encostada na varanda do terceiro prédio à sua frente, os violinos que estavam esborrando, em contos de Garcia Marques, as janelas dos meninos que queriam um barco de natal. A luz é como água. E o que será como a luz? Ruas são como o que? Não é a mesma coisa, não é a mesma coisa; e nem assim é a mesma coisa. Nem e assim não são a mesma coisa. Mas “nem mesmo assim” é a mesma coisa. Começando a ver a janela novamente, agora vazia, vejo que ela ainda está lá, sempre estará. Com seus cílios grandes o suficiente para eu vê-los a esta distância batendo contra a fumaça do tempo. Qualquer coisa grande o bastante para ser vista contra a fumaça do tempo pode ser vista daqui, porque aqui chega antes dele. Aqui está sempre antes, o depois é às vezes para lá, nunca para cá. O depois e os outros oriundos desse primeiro nunca chegaram até aqui, a rua líquida não os deixou. Era uma confluência rítmica que levava o som do violino para onde não era preciso, para onde eu não preciso. E vejam só que ironia: fui dormir e nunca mais me esqueci do tamanho daquela varanda, tão cheia de passos vazios. É que o concreto cabido ali fez uma ponte até mim, até onde eu poderia ir, até onde eu fui, e desde onde eu voltei até agora, quando olho para você, que nunca quis ir até a outra varanda, que tem medo da luz andarilha e do violino diáfano, que descansa o queixo sobre o dorso das mãos e desdenha o olhar para as ruas líquidas. Você se deitou em cima do espaço que cobre a distância até a varanda e nunca mais pisou no chão. Não por medo ou por vingança, mas simplesmente por leveza. E vejam só que ironia: fui dormir onde o vento está e o abstrato forrou um lençol entre minhas pernas, num nó que prendeu meus pés e me pendurou de cabeça para baixo, somente para ver suas anáguas armadas de susto. Eram duas: uma era o medo do futuro e a outra, que estava por baixo, o medo do passado. Entre elas, uma luz, a acesa no prédio da frente, onde a Vênus de Milos chorava por nada, e por sempre. Nem sempre foi possível que a víssemos chorando, mas ela sempre esteve lá. Ao esticar meus braços para tocá-la, alcancei os seus. Eles estavam chorando por terem perdido o contato com seu corpo, jazendo na calma da desistência. E por que? Somente porque as ruas são os líquidos que escorrem entre nossos dedos dos pés, entre as salivas das nossas bochechas deitadas e entre lágrimas já perdidas e pingadas. E nem era um violino que eu via, mas uma pêra mordida, suculenta e usada, como uma curva de sossego. Nossos riscos e ladrilhos, nossos combogós e sincronias, nossos espaços esquecidos e os amores que nunca existiram, nem existirão.
por Wagner Lucena
2 Comentários:
LEGAL, gostei ...
E principalmente no final quando diz que "... amores que nunca existiram, nem existirão".
Quem nunca viveu esse provocado inferno distante, imaginário e real ao mesmo tempo?
Angolla
Uma bela viagem. Tá valendo.
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