SUSPIROS DOS TRÊS
- Cadê ela?
- Está lá, num banco rezando.
- Deus do céu, não tenho coragem.
- Tarde demais, você prometeu.
Pensaram horas. Na verdade, o dia e noite anteriores foram de tormentos, as coisas oscilavam entre arrepender-se e engenharias da dor. Em serem rápidos, piedades, eficiências e mais outras transições. Carlos trouxera xilocaína, mas para passar nas próprias mãos, não queria senti-las enquanto as usasse. Vai ser terrível para mim guardar as sensações de segurar martelos, pregos e pele. Também pensava em suspender tudo em cordas e deixar cair de repente. Talvez a gravidade fizesse o seu papel, considerando a gravidade do caso. Mas ainda assim, vamos ter que esperar quando tudo estiver. Fez uma pausa procurando as palavras, consumado para tirar ela daí? Por acaso isto não é trabalho para as Madalenas?
- E acaso sou eu o pastor do meu irmão? Isso não tem como dar certo. Nuvens negras nos cercam.
- Tu e sua liturgia de cinemas. Para mim basta este vinho. Será que já foi abençoado? Com certeza não, sobras nunca são benzidas, tampouco bênçãos sobram. Venha, ajude-me aqui com a sua marmota, só quero que dê certo. Por mim, faríamos à moda antiga.
- Bota antiga nisso. Riu então. Riram os dois. Portanto, já estavam prontos. Penetravam no humor negro e sabiam que o próximo passo seria o desespero, colocando tudo a perder. Não podemos deixá-la na mão. Podemos sim, tanto é que deixaremos. E as gargalhadas anunciavam que já era mesmo hora de parar.
Havia ainda a dúvida se fariam tal qual foi feito com o outro, mas isso era impossível, não havia lança na igreja. Assim não vai ter tanto sofrimento como antes. E sem isso não há redenção.
- E você acha que ela não já se agarrou às pedras do Gólgota?
- Roberto, eu não sabia que você era religioso.
Respondera que sim, mas aqui dento, para ele mesmo. Um cara sensível, porém macho, é bom frisar. Macho p’ra caralho, já comi muito aquela lá. Tô sabendo, o cliente. Cliente não, me respeite e a ela também. Amantes. Era assim por amor que decidiu escutar. Conversaram noites antes disso tudo. Sobre o que já existia, o que passou, para onde iriam e todo o resto filosófico.
- O resto filosófico? Como assim?
Carlos não iria querer saber, do contrário seriam duas vítimas e um único algoz. Você bem sabe Carlos, você bem sabe. Afinal, não é você que se mete a escrever? Escrever sobre tudo?Aquilo era mais do que escrever. Eram mãos e objetos pontudos, mas a superfície era diferente. A tinta brotaria da caneta direto sobre o fato, viva, para cima. Indo deitar-se de pronto morna na textura subjacente da realidade. A coisa toda nasce e morre nas minhas mãos feito o cuspe de Deus.
- Vocês estão prontos?
- Ave Maria, ainda não Maria, reze mais. Peça mais perdão. Senão por você, mas por nós. Dê-nos forças.
Voltara para Carlos e constatava que ele ainda não está pronto. Queria convencê-lo de que não estariam matando, mas dando uma nova vida. A resposta veio tão truncada entre soluços que foi melhor dar-lhe uma bofetada e mandar ajudar a erguer as madeiras.
- Você pode até chorar, mas eu furo seu olho se tremer na hora H e fizer a bichinha sofrer.
- Eu já matei uma vez Roberto, isto não é novidade para mim.
A sangue frio, Carlos já matara. Anos atrás. Ele estava doente em ver aquela criatura com a qual convivera por tanto tempo sofrendo. Ver aqueles olhinhos molhados de tanta comiseração e desapego pela vida, latentes em um silêncio 80 x 50 em cima da estante. Era mais do que podia suportar. Eu cheguei do trabalho morto morto naquele dia, mas nem pensei duas vezes. Na verdade, pensara inúmeras vezes, estacionado na sala olhando-o. Dei uns quatro passos, tu sabe, minha sala é pequena. Criou coragem, molhou o braço até o cotovelo e voltou o ato com a mão cheia. Espremeu até os olhos saltarem ainda com vida. Um caiu no chão e o derradeiro ficou pendurado olhando para ele até ficar vazio, sem brilho, córnea, veias, líquidos e essência. Serviço feito, foi ao banheiro lavar as escamas grudadas na mão.
- Narrativa comovente. Agora vá chamar Maria. Estamos prontos.
Escolheram a benevolência de colocar as madeiras em cima de um móvel e embaixo de uma viga, presas com cordas. Inclinada, a cruz ficaria cômoda, até onde ela pode ser. O móvel ia ser chutado e aquela despencaria, pendurada pelos suspiros dos três. Não havia como errar. Eu tenho certeza, o tranco quebra os ombros abafando a tortura. Não vai ser preciso ficar esperando? Claro que não. Podemos inclusive voltar para casa e esperar o satanás que puxa pelos pés, ou o que quer que seja. As horas que causaram lá, a salvação da raça humana, aqui, passariam em segundos. A madeira era mole o suficiente para deixar entrar a loucura do ato e dura o bastante para segurar o peso de qualquer fraqueza momentânea.
Carlos batera na cruz enaltecendo sua nobreza em absorver todas as culpas.
- Homem, não faça disso um conto, é uma crônica.
- É verdade. É cronicamente inviável.
Maria encostou-se nos paus e, por piedade aos amigos, fechou os olhos. O martelo zumbiu o primeiro prego e nada mais além daquele ponto pôde ser lembrado pelos três.
Roberto teve que apelar para uma fúria assassina que se revelou inexistir à medida que o barulho fez as beatas da vizinhança crerem que o padre encomendava alguma novidade, uma surpresa aos fiéis, a ser revelada pela manhã. Por certo, pensaram elas, amanhã vamos ver uma Via Cruxis novinha em folha, pregada nas paredes, a outra já estava muito velha, amarelada, roída, parece até a original.
Carlos não sentia as mãos e temeu nunca mais ter coragem de fazê-lo. Passaria o resto da vida, que esperava ser breve, com as mãos lambuzadas de anestésico. A dormência subia pelos braços, alcançava a testa e nuca, ora quente, ora gelada. Não sabia que era sua agonia que o fazia passar as mãos na cabeça mais do que deveria.
Maria estava calma, nada daquilo chegava aos pés do que ela sentira em vida. Antes, tudo fora de uma quantidade que a abraçava com a frieza dos devires. Até que ela concluiu que os Jesuses devem mesmo ser crucificados, para alívio destes e dos viventes.
Finda a primeira parte, seis olhos se abriram em 216 dores diferentes. Três últimos atos de coragem, 6 últimos verbos.
Empurraram o móvel e um solavanco escorreu pela cruz até o ar, dois dedos do chão. Um pêndulo de horas e a sensação dos contrastes.
Carlos estava certo, a mulher ficou sem pescoço, sufocada pelo vitral, iludida pelas luzes das tais portas celestes e confundida entre a redenção do sofrimento pagão e a prataria que ostentava os corpos de Cristo.
A capela inteira se pôs estática, como uma perdiz imóvel na folhagem diante da eminência do faro da raposa. Prestes a arrancar vôo do lugar, horrorizada com o sacrilégio daquela repetição, só sossegou voltando a ser paredes quando Maria invadiu a sacristia com seus últimos ares, entupindo os quatros pulmões dos assassinos com uma certeza abafada.
- Vamos embora. Eu nunca mais que piso numa igreja.
A porta dos fundos bateu e a deusa continuou pingando letra pelas mãos. Vendo camas, calçadas, imagens, escuros, lembranças sem passarelas. Um estreitamento no pescoço, aquele tremor aleatório, a sensação do fim e a decepção em perceber que era a manhã quebrando a janela que lhe abria portas imaginárias, que não é a morte que alvorece, são as alvoradas que morrem. Adiantando-se às expectativas, um nada indefinível, sem nome, empurrou sua cabeça para dentro da água. Desta vez, a tia não acudiu para livrá-la dos meninos malvados nem a suspendeu pelos cabelos. Por baixo das pálpebras, esfriava-lhe o cérebro dizendo palavras que não existem, ausentava-lhe de substantivos. Pronto para recebê-la.
Maria estava calma, nada daquilo chegava aos pés do que ela sentira em vida. Antes, tudo fora de uma quantidade que a abraçava com a frieza dos devires. Até que ela concluiu que os Jesuses devem mesmo ser crucificados, para alívio destes e dos viventes.
Finda a primeira parte, seis olhos se abriram em 216 dores diferentes. Três últimos atos de coragem, 6 últimos verbos.
Empurraram o móvel e um solavanco escorreu pela cruz até o ar, dois dedos do chão. Um pêndulo de horas e a sensação dos contrastes.
Carlos estava certo, a mulher ficou sem pescoço, sufocada pelo vitral, iludida pelas luzes das tais portas celestes e confundida entre a redenção do sofrimento pagão e a prataria que ostentava os corpos de Cristo.
A capela inteira se pôs estática, como uma perdiz imóvel na folhagem diante da eminência do faro da raposa. Prestes a arrancar vôo do lugar, horrorizada com o sacrilégio daquela repetição, só sossegou voltando a ser paredes quando Maria invadiu a sacristia com seus últimos ares, entupindo os quatros pulmões dos assassinos com uma certeza abafada.
- Vamos embora. Eu nunca mais que piso numa igreja.
A porta dos fundos bateu e a deusa continuou pingando letra pelas mãos. Vendo camas, calçadas, imagens, escuros, lembranças sem passarelas. Um estreitamento no pescoço, aquele tremor aleatório, a sensação do fim e a decepção em perceber que era a manhã quebrando a janela que lhe abria portas imaginárias, que não é a morte que alvorece, são as alvoradas que morrem. Adiantando-se às expectativas, um nada indefinível, sem nome, empurrou sua cabeça para dentro da água. Desta vez, a tia não acudiu para livrá-la dos meninos malvados nem a suspendeu pelos cabelos. Por baixo das pálpebras, esfriava-lhe o cérebro dizendo palavras que não existem, ausentava-lhe de substantivos. Pronto para recebê-la.
por Wagner Lucena
2 Comentários:
legal... adorei o conto.
Very pretty site! Keep working. thnx!
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